terça-feira, 17 de julho de 2012

A necessidade de criação de uma sociedade protetora dos animais



A necessidade de criação de uma sociedade protetora dos animais

Vimos hoje levantar um grande grito de protesto e de indignação em prol dos pobres animais, dos nossos irmãos inferiores, segundo a frase de Santo Agostinho.

Vimos apelar para a consciência e para o coração de quem nos lê, e, como nós, presencia todos os dias a forma bárbara porque são tratados pelas classes menos cultas da sociedade.

Dois ónibus que transitam entre Ponta Delgada e Ribeira Grande são movidos respetivamente por três muares, cujo único aspeto constitui uma completa ignomínia. Inverosimilmente esqueléticos, cheios de equimoses e mataduras, não podemos vê-los sem que se nos mova a comiseração mais profunda pelo destino adverso.

Outros, um pouco menos esqueléticos talvez, mas quase tão infelizes, atravessam as ruas de Ponta Delgada ajoujados a carroças, cujos fueiros sinistros constituem o instrumento de suplício que os obriga a deslocar pesos muito superiores às suas forças.
Não há muito, em plena rua da Misericórdia, numa das artérias mais concorridas da cidade, um pobre muar escorregou e caiu, ficando a arquejar sob o peso da carga que transportava, e eram grossos madeiros.

Das lojas vizinhas, honra lhe seja, acudiu gente, que no auge da aflição começou a descarregar a carroça, cujo peso brutal ameaçava quebrar as costelas do animal sufocado. Quem menos se ralou foi o carroceiro, cuja fisionomia alvar exprimia o mais abjeto rancor, sem dúvida pela demora ou incómodo que o incidente lhe causaria. Fomos testemunhas do facto, e connosco um cavalheiro do continente, atualmente em residência nesta cidade, e com o qual, acerca do mesmo, trocámos impressões.
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Não raramente se encontram pequenos carros, transportando sacas, barris ou indivíduos, sãos e robustos, às vezes uma e outra carga, e puxados por carneiros, cujos membros retesados indicam claramente o esforço sobre-humano que fazem para poder transportar as pesadas cargas, umas, além de pesadas, antipáticas.

Os indivíduos que assim abusam do direito da força, quando se lhes faz alguma advertência, respondem insolentemente, o que há apenas dois dias acontecia com dois dos nossos leitores, uma senhora e um cavalheiro, que já depois de escrito em parte este artigo, vieram pedir-nos que tomássemos na imprensa a defesa dos pobres lanígeros e similares.

Este espetáculo odioso e deprimente para o nosso estado de civilização pode ser desde já reprimido.

Bastará um alvará do sr. Governador civil do distrito, proibindo que na zona a cargo da sua administração seja permitido utilizar s carneiros como bestas de carga.

A sua Ex.ª endereçamos desde já um pedido, neste sentido, na certeza de que o aparecimento do referido alvará será acolhido como um ato de boa e justa administração por quantos possuem sentimentos humanitários e presam o bom nome desta ilha perante os estrangeiros que nos visitam.

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Nos campos, existe o costume bárbaro de deixar as crianças devastar ninhos e martirizar pássaros, com grande prejuízo, não só da agricultura, de cujos produtos são os mais vigilantes guardas, mas ainda para o carácter das mesmas crianças, que vão adquirindo hábitos de crueldade, que poderão influir poderosamente, de futuro, nas suas relações interindividuais.

Ora é mister que nos levantemos todos, num grande impulso de caridade, e diligenciemos fazer cessar semelhantes cenas, que são incompatíveis com o século em que estamos e indignas dum povo civilizado.

E nada mais prático se nos afigura, para o conseguir, do que a criação de uma sociedade protetora dos animais, à imitação das que existem em Lisboa e Porto e tão bons serviços tem prestado como elemento civilizador!

Para a realização cabal do alvitre que aqui iniciámos, contamos com a coadjuvação de todos os membros da imprensa micaelense, para a qual apelamos desde já.

E contamos ainda com a coadjuvação de todas as pessoas de boa vontade e de bom coração.

- É necessário que nos unamos nesta nova cruzada.
- É mister acabar com as cenas aviltantes que todos os dias vimos presenciando.
- É preciso que a nossa proteção, a nossa caridade, e a nossa benemerência se estendam, como um benéfico manto, aos nossos irmãos inferiores, a esses pobres animais que nos protegem, nos servem, nos ajudam, nos guardam, nos vestem, nos sustentam e nos amam com tão enternecido e desinteressado afeto!

Guerra sem tréguas aos indivíduos de mau carácter, que espancam as bestas de carga, martirizam os cães e os gatos, e privam os pássaros – essas estrofes aladas – da estremecida e indefesa prole!

Aí fica desde já registado o nosso protesto que, temos fé, encontrará eco em todas as consciências e em todos os corações.
(A Folha, nº 316, 25 de Outubro de 1908)

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