Numa tourada (1)
Pela
1 hora da tarde, e depois de havermos, à janela da sala do hotel, inutilmente
esperado uma carruagem requisitada, a qual nunca chegou a aparecer,
dirigimo-nos a pé para a praça de touros, sita num alto, na freguesia de S.
Pedro, indo ocupar um camarote.
Acha-se
em Angra uma quadrilha composta de jovens toureiros, los niños sevillanos, rapazes de 16 a 18 anos, ainda imberbes, que
correm novilhos com destreza, e fazem as delícias da população terceirense, tão
amadora de touros, que bem mostra correrem-lhes nas veias ainda hoje glóbulos
de sangue espanhol.
Tanto
os camarotes como as bancadas encontram-se repletos de espetadores, e, nos
primeiros raios de um lindo sol outonal, cintilam garridamente as cores claras
das toiletes femininas das senhoras
terceirenses, reputadas, entre as açorianas, pela sua graça e formosura.
Pelos
corredores, vendedores ambulantes oferecem favas torradas, milho submetido ao
mesmo processo culinário, laranjas e água, e, à entrada, ao balcão, vendem-se
refrescos, entre os quais cerveja da fábrica Melo Abreu Herdeiros, de Ponta
Delgada.
Começa
a diversão por exercícios de ginástica, executada por operários, sócios da
agremiação, Recreio dos Artistas.
Toca
uma filarmónica e, de espaço a espaço, sobem ao ar pequenas girandolas de
foguetes.
Concluídos
os exercícios acrobáticos, feitos, com mais ou menos mestria na barra fixa, são
retiradas estas e o tapete sobre o qual haviam dado cambalhotas os curiosos ginásticos.
Entra
então a quadrilha, que se dirige para o camarote da autoridade, a fazer os
cumprimentos do estilo, percorrendo em seguida a praça com vénias aos
espetadores.
Os
jovens toureiros vestem fatos claros, de vistosas cores. Usam meia de seda,
calção, sapatos de fivela e, como é da praxe, rabicho.
Um
deles monta um cavalo esquelético, de olhos vendados e é logo para o infeliz
quadrúpede que se dirige toda a minha atenção. É ele, não tenho pejo de o
confessar, que absorve toda a minha simpatia e para o qual todos os meus
melhores desejos…
Pobre animal, ser
incompleto, irmão nosso inferior, serviu o homem com toda a sua dedicação e com
toda a sua lealdade, consumindo em seu proveito todas as suas forças e toda a
sua inteligência!
Agora,
porém, no fim da vida, é posto à margem e alugado a preço ínfimo, para ir
servir de alvo às pontas de uma fera, da qual nem pode fugir, visto que tem os
olhos vendados!”
E
esta fera, pobre animal, também, foi arrancada ao sossego do seu pasto, para ir
servir de divertimento a uma multidão ociosa e cruel, em cujo número me incluo!
Entrará
assim em várias touradas, em que será barbaramente farpeada até que,
enfurecida, ensanguentada, ludibriada, injuriada, procurará vingar-se,
arremessando-se sobre o adversário que a desafia e fere. Depois de reconhecida
como matreira, tornada velhaca pelo
convívio do homem, será mutilada. Em vez de touro de praça, será boi de charrua
ou carroça, ou ambos alternadamente. E lavrará pacientemente, resignadamente,
santamente, as terras destinadas a produzir o trigo e o milho que o homem há-de
comer.
Quando
as suas forças tiverem entrado no período declinatório, dar-lhe-ão, em vez da
restrita ração quotidiana, dose dobrada. E quando algum descanso relativo,
aliado a esta também relativa superalimentação lhe tiverem revestido o
esqueleto de alguns escassos ádipos, será abatido e fragmentado, ainda para
alimentação do mesmo homem, que se não esquecerá, também, de lhe utilizar o
couro, para defesa dos seus pés, e os cascos e chifres para artefactos do seu
uso …
E,
então, por um fenómeno físico que muitas vezes tenho observado em mim própria,
toda a alegria festiva daquela diversão, em que certamente não haveria morte de
gente nem mesmo de bicho, se transforma em melancolia amaríssima, contra a qual
dificilmente posso reagir. Tento, todavia fazê-lo. Empunho o meu binóculo, e
enquanto não entra o touro, do que serei avisada pelo toque de corneta, vou
correndo com a vista os camarotes, em muitos dos quais reconheço caras minhas
conhecidas e, em alguns, os meus companheiros de viagem de bordo do Funchal.
Moniz
Machado, por exemplo, num camarote próximo àquele em que me encontro, come, ao
tempo, denodadamente milho torrado, e parece disposto a gozar a festa em todas
as suas peripécias, com o seu infalível bom humor. Para este feliz mortal, não
há melancolias nem tristezas, e este vale é bem mais de risos do que de
lágrimas!
Toca
dentro em pouco a corneta, a música ataca a canção do Toreador da Carmen de
Bizet, os capas poem-se em posição, e o cavaleiro empunha a lança com que tem
de defender-se, e ao triste cavalinho que monta…
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