A necessidade de criação de uma
sociedade protetora dos animais
Vimos hoje levantar um grande grito
de protesto e de indignação em prol dos pobres animais, dos nossos irmãos
inferiores, segundo a frase de Santo Agostinho.
Vimos apelar para a consciência e
para o coração de quem nos lê, e, como nós, presencia todos os dias a forma
bárbara porque são tratados pelas classes menos cultas da sociedade.
Dois ónibus que transitam entre
Ponta Delgada e Ribeira Grande são movidos respetivamente por três muares, cujo
único aspeto constitui uma completa ignomínia. Inverosimilmente esqueléticos,
cheios de equimoses e mataduras, não podemos vê-los sem que se nos mova a
comiseração mais profunda pelo destino adverso.
Outros, um pouco menos esqueléticos
talvez, mas quase tão infelizes, atravessam as ruas de Ponta Delgada ajoujados
a carroças, cujos fueiros sinistros constituem o instrumento de suplício que os
obriga a deslocar pesos muito superiores às suas forças.
Não há muito, em plena rua da
Misericórdia, numa das artérias mais concorridas da cidade, um pobre muar
escorregou e caiu, ficando a arquejar sob o peso da carga que transportava, e
eram grossos madeiros.
Das lojas vizinhas, honra lhe seja,
acudiu gente, que no auge da aflição começou a descarregar a carroça, cujo peso
brutal ameaçava quebrar as costelas do animal sufocado. Quem menos se ralou foi
o carroceiro, cuja fisionomia alvar exprimia o mais abjeto rancor, sem dúvida
pela demora ou incómodo que o incidente lhe causaria. Fomos testemunhas do
facto, e connosco um cavalheiro do continente, atualmente em residência nesta
cidade, e com o qual, acerca do mesmo, trocámos impressões.
҉
Não raramente se encontram pequenos
carros, transportando sacas, barris ou indivíduos, sãos e robustos, às vezes
uma e outra carga, e puxados por carneiros, cujos membros retesados indicam
claramente o esforço sobre-humano que fazem para poder transportar as pesadas
cargas, umas, além de pesadas, antipáticas.
Os indivíduos que assim abusam do
direito da força, quando se lhes faz alguma advertência, respondem
insolentemente, o que há apenas dois dias acontecia com dois dos nossos
leitores, uma senhora e um cavalheiro, que já depois de escrito em parte este
artigo, vieram pedir-nos que tomássemos na imprensa a defesa dos pobres lanígeros
e similares.
Este espetáculo odioso e deprimente
para o nosso estado de civilização pode ser desde já reprimido.
Bastará um alvará do sr. Governador
civil do distrito, proibindo que na zona a cargo da sua administração seja
permitido utilizar s carneiros como bestas de carga.
A sua Ex.ª endereçamos desde já um
pedido, neste sentido, na certeza de que o aparecimento do referido alvará será
acolhido como um ato de boa e justa administração por quantos possuem
sentimentos humanitários e presam o bom nome desta ilha perante os estrangeiros
que nos visitam.
҉
Nos campos, existe o costume
bárbaro de deixar as crianças devastar ninhos e martirizar pássaros, com grande
prejuízo, não só da agricultura, de cujos produtos são os mais vigilantes
guardas, mas ainda para o carácter das mesmas crianças, que vão adquirindo
hábitos de crueldade, que poderão influir poderosamente, de futuro, nas suas
relações interindividuais.
Ora é mister que nos levantemos
todos, num grande impulso de caridade, e diligenciemos fazer cessar semelhantes
cenas, que são incompatíveis com o século em que estamos e indignas dum povo
civilizado.
E nada mais prático se nos afigura,
para o conseguir, do que a criação de uma sociedade protetora dos animais, à
imitação das que existem em Lisboa e Porto e tão bons serviços tem prestado
como elemento civilizador!
Para a realização cabal do alvitre
que aqui iniciámos, contamos com a coadjuvação de todos os membros da imprensa
micaelense, para a qual apelamos desde já.
E contamos ainda com a coadjuvação
de todas as pessoas de boa vontade e de bom coração.
- É necessário que nos unamos nesta
nova cruzada.
- É mister acabar com as cenas
aviltantes que todos os dias vimos presenciando.
- É preciso que a nossa proteção, a
nossa caridade, e a nossa benemerência se estendam, como um benéfico manto, aos
nossos irmãos inferiores, a esses pobres animais que nos protegem, nos servem,
nos ajudam, nos guardam, nos vestem, nos sustentam e nos amam com tão
enternecido e desinteressado afeto!
Guerra sem tréguas aos indivíduos
de mau carácter, que espancam as bestas de carga, martirizam os cães e os
gatos, e privam os pássaros – essas estrofes aladas – da estremecida e indefesa
prole!
Aí fica desde já registado o nosso
protesto que, temos fé, encontrará eco em todas as consciências e em todos os
corações.
(A Folha, nº
316, 25 de Outubro de 1908)
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